30.12.08

Bonne année!!!

Aos poucos (mas muito importantes) leitores deste blog, um inesquecível 2009 com realizações surpreendentes!

19.12.08

Boa leitura (13) - Um escritor pitoresco

Orhan Pamuk encanta com “O Livro Negro”


Como o mágico de um cabaré de Istambul, a certa altura do livro, que vai tirando caixas de dentro de caixas num truque que parece interminável, Orhan Pamuk construiu nos anos 90 esta intrincada trama, aparentemente a história triste de um abandono amoroso duplo cercada de mistério, tocando as raias de um caso policial de desaparecimento e até de falsidade ideológica. E, como não poderia deixar de ser no caso desse apaixonado por sua terra natal, a cidade aparece aqui em toda a sua grandiosidade e miséria, com seus monumentos, mas também as áreas mais recônditas e marginais.

É numa Istambul invernal, enevoada, pardacenta, que o protagonista, o advogado Galip, chega em casa numa noite e depara com uma breve carta de despedida de sua mulher e prima, Rüya (“sonho”), por quem é apaixonado desde a infância. Ele tem de ir a um jantar no prédio onde moram seus pais e tios e mente para eles sobre a ausência dela. Também está intrigado com o sumiço de outro integrante da família, meio-irmão de Rüya, o jornalista Cêlal, que admira e de quem é amigo.

Galip desconfia que ambos estejam juntos, mas os parentes nem se importam mais com os costumeiros desaparecimentos de Cêlal, de quem desistiram de saber endereço ou telefone, a não ser o do jornal para o qual escreve crônicas. Estas são dos mais variados temas — memórias da vida familiar, locais e personalidades de Istambul, estrelas de cinema, poetas sufis, o hurufismo (obscura seita do século XIV cujos adeptos vêem letras desenhadas por Alá nos rostos), mas também gângsteres e política. Sem dúvida, a vida do famoso Cêlal não é fácil e ele recebe ameaças, daí esconder-se.

Galip está tão certo de que poderá achar Cêlal (e, claro, Rüya) por meio de mensagens ocultas nas crônicas e também se pensar de modo igual que se muda para o que seria o último apartamento do amigo (no sótão do prédio familiar) e passa a viver como se fosse ele. Não só: com o tempo passa a escrever como Cêlal e a assinar com o nome dele as crônicas para o jornal. Já Pamuk as entremeia com os capítulos, enredando as épocas em que foram escritas com o presente, a cidade antiga com a moderna, tema aliás ao qual também se dedicou em “Istambul”, retratando o perene conflito e fascínio entre Oriente-Ocidente.

Assim como o autor, o leitor terá de prezar a lentidão das ações, ser paciente e perspicaz e agir como um detetive que sabe extrair pistas de fontes insuspeitas e fatos que passariam despercebidos. Tudo é peça para esclarecer o enigma e o engenho de Pamuk exige aguda atenção — como a de uma leitora conterrânea dele. Ela revelou num site que na edição turca o escritor cita o nome do edifício onde mora usando a letra inicial de cada parágrafo de certo trecho da obra.

Também a certa altura deste “O Livro Negro”, o cronista diz: “Sou um escritor ‘pitoresco’.” Pitoresco é Pamuk e no sentido original: a palavra derivada do italiano “pittoresco” (relativo a obras de pintura, em especial a paisagens e cenas bem expressivas) representa tudo o que é digno de ser pintado, é envolvente e fascinante, em suma, a alta literatura.

Pois foi pintando Istambul com tonalidades fascinantes (outro tom predominante no “Livro Negro” é o verde da tinta das canetas) que Pamuk, nascido em 1952, conquistou o Nobel de Literatura em 2006 e além de ser o principal romancista turco da atualidade tem seus livros, como “O Castelo Branco”, “Meu Nome É Vermelho” e “Neve”, publicados em mais de 40 cores, quer dizer, idiomas.


“O Livro Negro” - Orhan Pamuk - Companhia das Letras, 528 págs., R$ 62,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 12/12/2008

Vejam também: depoimento de Pamuk a Edney Silvestre, da Globo.com, parte 1 e parte 2

Las Mujeres (4) - Sara

LA PÁGINA VACÍA

A Stéphane Mallarmé

Cómo atrever esta impura
cerrazón de sangre y fuego,
esta urgencia de astro ciego
contra tu feroz blancura.
Ausencia de la criatura
que su nacimiento espera,
de tu nieve prisionera
y de mis venas deudora,
en el revés de la aurora
y el no de la primavera.

(Sara de Ibáñez - Chamberlain, Uruguai-11/1/1909, Montevidéu, 3/4/1979 - in Las Estaciones y Otros Poemas, Tezontle, México, 1957)



14.12.08

Boa leitura (12) - Kadaré tira poesia das pedras

Autor relembra a infância sob a 2ª Guerra

Poético, melancólico, mas com toques bem-humorados, e francamente autobiográfico é este romance do escritor albanês Ismail Kadaré. Publicado pela primeira vez em 1970, ele agora ganha tradução caprichada, diretamente do albanês, de Bernardo Joffily.

A entrada da Albânia na modernidade coincide aqui com a pré-adolescência do narrador, um menino fantasioso e inteligente, que, durante a Segunda Guerra Mundial, vê suceder várias vezes a ocupação de sua cidade natal, Gjirokastra — não por acaso a mesma de Kadaré —, pelos fascistas italianos, depois pelos gregos e, finalmente, pelos nazistas.

Resistente como a pedra usada na construção das casas e no calçamento, presa a antigas tradições e superstições, que reluta em abandonar, fechada sobre si mesma, a população é obrigada a entrar em contato com novidades — como os aviões — e a sair da vidinha provinciana quando começam os bombardeios.

Em meio a momentos de grande tensão e mesmo ao testemunhar a crueldade da guerra — como quando um dos habitantes desfila, triunfante, pela cidade exibindo o braço de um soldado inglês que morreu quando seu avião caiu nos arredores da cidade —, o menino escapa pela fantasia, dando vida até às casas pétreas, à cisterna, aos bombardeiros e caças no recém-construído aeroporto e aos elementos naturais, assim como descobre o fascínio da leitura, ao ler “Macbeth”. Seu envolvimento com a leitura da tragédia é tal que ele até fica doente.

O leitor é situado nos fatos reais que cercam a vida do garoto por meio de pequenas “crônicas” — recortes de notícias do jornal municipal da época e também das anotações de uma misteriosa velha.

Bastante conhecido no Brasil pelo livro “Abril Despedaçado”, adaptado para o cinema por Walter Salles Jr. em 2001, indicado várias vezes para o Nobel de Literatura, ganhador, em 2005, do primeiro International Booker Prize pelo conjunto da obra, Kadaré nasceu em 1936 e começou a carreira literária como poeta em 1954. Na década de 1960, estreou na ficção com “O General do Exército Morto”, com o qual passou a ser conhecido na Europa.

Envolvido em política, acabou perseguido pelas críticas que fazia ao partido comunista, então no poder, e teve de pedir asilo à França nos anos 1990. Só em 1999 voltou para a Albânia. Entre os livros do autor publicados no Brasil figuram “Dossiê H”, “Os Tambores da Chuva” e “A Filha de Agamenon & O Sucessor”.


“Crônica na Pedra” - Ismail Kadaré - Companhia das Letras, 280 págs., R$ 44,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 10/10/2008

6.12.08

Boa leitura (11) - O nobre elefante de Saramago

Escritor nos leva em aventura pelo século XVI

Graves problemas respiratórios irrompidos no ano passado interromperam a longa viagem de uma caravana ligeiramente exótica que conduzia um elefante asiático através da Europa no século XVI. Seu condutor, o Nobel de Literatura de 1998, José Saramago, chegou a pensar que os viajantes não cumpririam seu objetivo. Mas, como ele mesmo já disse, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”.

Muito diferente de obras anteriores, como “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “A Caverna”, que prendiam o leitor em teias apocalípticas e claustrofóbicas, o novo romance do escritor português — ele prefere chamar de conto —, a ser lançado mundialmente no Brasil no fim deste mês, esbanja leveza. Mas não deixa de trazer a marca registrada do autor: o fino humor e a profunda ironia, as críticas mordazes à Igreja Católica e aos caprichos e imbecilidades de quem acredita deter algum poder genuíno — do mais humilde súdito ao próprio rei, passando, é claro, pelo pároco.

Nas páginas de “A Viagem do Elefante” comprova-se mais uma vez o poder imaginoso de Saramago, que informa ao leitor, antes de mais nada, o que o inspirou: uma série de pequenas esculturas de madeira que retratavam uma fila de pessoas e um elefante, além da Torre de Belém, em Lisboa, e de outros monumentos europeus, num restaurante em Viena. Contaram-lhe, então, que ela representava a viagem de um elefante do rei d. João III que em 1551 foi levado para a capital austríaca, atravessando meia Europa. Não há muitos registros históricos sobre isso, mas o romancista diz que “pressentiu que podia haver ali uma história”.

Tão logo nos habituemos à pontuação peculiar do autor, essa história passa a fluir harmoniosa: a do elefante Salomão — oferecido por d. João III como presente de casamento ao arquiduque da Áustria, Maximiliano II, genro do imperador da Espanha, Carlos V — e seu difícil itinerário, de início sob um calor tórrido e no fim enfrentando o frio dos Alpes austríacos. Isso sem contar algumas proezas que tem de aprender rapidinho — como ajoelhar-se diante da basílica de Pádua por imposição do padre local, ansioso por fabricar um milagre para a população. Um “milagre” que só é possível pela habilidade e obstinação do personagem mais inteligente do livro, o filosófico cornaca (tratador de elefantes) indiano Subhro, por intermédio do qual Saramago dá suas bordoadas mais elegantes no establishment.

O escritor português, que completou 86 anos no dia 16 e tem mais de 20 livros publicados no Brasil, esteve no dia 26 na Academia Brasileira de Letras, no Rio, onde foi homenageado, e participou do lançamento mundial de “A Viagem do Elefante” no dia 27 no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

“A Viagem do Elefante” - José Saramago - Companhia das Letras, 264 págs., R$ 42,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 21/11/2008 com informações atualizadas em 6/12/2008 para este blog


Casa Fernando Pessoa


Aqui neste profundo apartamento
Em que, não por lugar, mas mente estou,
No claustro de ser eu, neste momento
Em que me encontro e sinto-me o que vou,

Aqui, agora, rememoro
Quanto de mim deixei de ser
E, inutilmente, [*] choro
O que sou e não pude ter.
(1924)

Está bonito o novo site da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Tem textos, biografia, fotos, programação, miniantologias de outros escritores. Acima, o grande poeta retratado pelo artista português Almada Negreiros. Confiram!

[*] espaço deixado em branco pelo autor, in Poesia 1918-1930, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

4.12.08

Las Mujeres (3) - Juana


QUIETUD

Calle sombreada de sauces
Y azul jacarandá.
Todos los ruidos del mundo
En ella se dormirán.

Y el sueño será azul como
La flor del jacarandá.


¡ Quién te diera, alma cansada
Y herida por el temor,
Todo un día de silencio
En esta calleja en flor!


(Juana de Ibarbourou - Melo, Uruguai, 8/3/1892-Montevidéu, 15/7/1979 - in Poemas, Espasa-Calpe Argentina, 1950)

Boa leitura (10) - Uma homenagem lírica aos que viveram

O escritor inglês John Berger apresenta suas memórias de uma maneira original em “Aqui Nos Encontramos”


O aclamado escritor inglês John Berger, de 81 anos, encontrou uma maneira inovadora de narrar suas memórias: ir ao encontro das pessoas que foram muito importantes na sua vida, de diversas nacionalidades e espalhadas por países como Portugal, Suíça, Polônia, Inglaterra, Espanha e França. Com um detalhe: elas estão mortas há muito tempo. Não, nada há de macabro nos relatos, redigidos, aliás, com leveza poética e elegância. Trata-se apenas de uma forma de puxar o fio da meada das lembranças.

A jornada começa em Lisboa, capital que evoca a saudade — esta palavra que surpreende os estrangeiros por só existir na língua portuguesa e à qual ele atribui mais significado do que apenas nostalgia — e o fado, a saudade em forma de música.

Lá, ele encontra o fantasma da mãe. “Aquilo que você deveria saber é o seguinte: os mortos não ficam onde estão enterrados. Os mortos, quando estão mortos, podem escolher onde querem viver na Terra, sempre se supondo que eles decidam ficar na Terra”, adverte-lhe a idosa inglesa, que optou por ficar nessa cidade. E lhe pede para homenagear os que se foram: “Faça o gesto de cortesia de nos observar.”

A primeira homenagem é a um de seus autores preferidos, Jorge Luis Borges, em Genebra, ponto de convergência de revolucionários, conspiradores, líderes do mundo todo, cidade “tão contraditória e enigmática quanto uma pessoa viva”. Ao lado de outra mulher de sua família, desta vez bem viva, sua filha Katya, John visita o túmulo do escritor argentino, que quis ser enterrado na cidade suíça.

Ganhador do prestigiado Booker Prize em 1972 por “G.”, Berger, no entanto, não se restringe apenas a relatar os dias idos. Enquanto viaja, contempla o presente, registra a beleza dos locais e revela suas reflexões sobre o vivido.

Assim é em Le Pont d’Arc, no Ardèche, região no sul da França, quando visita cavernas com pinturas rupestres dos Cro-Magnons descobertas em 1994. Também desenhista, o escritor medita sobre arte e passagem do tempo.

Já no distrito londrino de Arlington, encontra-se com um velho colega da escola de arte, que vive numa casa onde ainda prevalece a decoração do tempo em que sua mulher era viva, para que o amigo o ajude a se lembrar do nome de uma paixão de juventude. “Aqui Nos Encontramos” é seu sétimo livro publicado no Brasil.


“Aqui Nos Encontramos” - John Berger - Rocco, 208 págs., R$ 33,50

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 18/7/2008