29.4.09

Boa leitura (21) - O amálgama ficcional de Levi

Autor italiano glorifica o trabalho

Quando se fala do escritor judaico-italiano Primo Levi (1919-1987), de imediato vem à mente a palavra Auschwitz, pois ele é sobretudo lembrado pelos livros que escreveu contando as agruras que teve de enfrentar nesse campo de concentração polonês durante a Segunda Guerra, como “A Trégua” e “Se não hoje, quando?” Este “A Chave Estrela”, no entanto, nada tem de guerra, não fala do holocausto dos judeus nem de sofrimentos terríveis e destruição. Trata, na verdade, de construção, do engenho humano, sua capacidade e seu empenho em superar o próprios limites, e do prazer de vencer desafios profissionais.

Químico especializado em vernizes, Levi glorifica, neste romance escrito em 1978, o trabalho anônimo, cotidiano, bem-feito, por meio da figura de Tino Faussone, competente montador de torres, pontes, gruas, guindastes, que encontra num país do Leste Europeu e de quem ouve dezenas de histórias.

“Se excluirmos os instantes prodigiosos e singulares que o destino nos pode dar, amar o próprio trabalho (o que, infelizmente, é privilégio de poucos) constitui a melhor aproximação concreta da felicidade na terra: mas esta é uma verdade que não muitos conhecem”, escreve perto do meio do livro.

Faussone encarna a liberdade de escolha, de ir e vir pelo mundo, de comprazer-se com o resultado das instalações de que participa e tem como coadjuvantes os elementos com que a espécie humana sempre teve de lidar — água, terra, fogo, ar —, além das ferramentas e dos materiais.

É um operário exemplar, um herói que, faça muito calor ou muito frio, sob neve ou vento forte, literalmente põe as mãos à obra e representa as realizações concretas e visíveis do homem, em contraste com a sutileza dos procedimentos microscópicos do químico de vernizes e suas delicadas substâncias, assim como com a literatura. Pois Faussone não se satisfaz apenas com o fazer. Ele também quer contar o que fez. E o autor lhe promete que vai tranformar suas grandiosas narrativas em livro.

Ouvinte atento, o químico fica totalmente subjugado ao jorro desordenado de palavras do montador, aos relatos entrecortados por lembranças da infância, da juventude e por muitos ditados populares, às idas e vindas da fala coloquial sem amarras. Frear esse discurso é “como parar uma onda de ressaca”, observa Levi.

A linguagem é clara, repleta de termos técnicos e científicos (devidamente explicados), e a estrutura muito bem aparafusada com a emblemática chave estrela — com o perdão do trocadilho. No entanto, há espaço também para o humor, a ironia e, até, a poesia, amalgamando, como queria Levi, a cultura científica e a literária.


“A Chave Estrela” - Primo Levi - Companhia das Letras, 200 págs., R$ 39,50

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 13/3/2009

18.4.09

Num abril já longínquo


Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.

Quasi às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.

Girassol do falso agrado,
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.


18/4/1931

(Fernando Pessoa in Poesia - 1931-1935, Companhia das Letras, 2009)

17.4.09

Boa leitura (20) - Prosa delicada e suave como a seda

Alessandro Baricco conta uma história cheia de silêncio e sombras

A suavidade da seda permeia este relato, escrito por um dos mais importantes autores italianos contemporâneos. Tecida com delicadeza, com espaço para o silêncio, as sombras, as cores esmaecidas — como nos ambientes japoneses —, a prosa lírica de Alessandro Baricco (nascido em 1958 em Turim) capta a poesia cotidiana numa trama simples.

A história, passada no século XIX, é de Hervé Joncour, que abandona sua carreira militar aos 24 anos para se tornar negociante de bicho-da-seda em Lavilledieu. A cidade francesa é uma pequena produtora de seda e se vê ameaçada por uma praga que ataca a criação dos bichos no local. Graças à disposição de Joncour em viajar para o Japão, onde não há essa epidemia, a cidade enriquece com a sericicultura.

A viagem — longuíssima — é uma aventura para o rapaz, que a princípio nem sabe onde fica o Japão, para ele “o fim do mundo”. Lá, torna-se aliado de um grande fornecedor e fica fascinado pela mulher dele, silenciosamente sedutora: “Seus olhos não tinham o corte oriental, e o rosto era o rosto de uma menina.” O livro é também a história dessa relação tácita, que pode trazer conseqüências inesperadas.

De aparência tranqüila, mas por dentro perturbado por essa paixão impossível, o personagem, com o passar do tempo, acaba por achar um sentido para a existência, por meio da contemplação, algo tão ligado à cultura oriental. “Seda” é cheio de evocações, de aproximações com esse universo — lago, vento, revoadas de pássaros, tilintar de sinos de ouro minúsculos, como nas gravuras. Uma leitura que traz serenidade.


A trama foi filmada em 2007 por François Girard, com Keira Knightley e Michael Pitt como protagonistas. Não dá para entender por que no Brasil seu DVD, lançado no ano passado, recebeu o título de "Paixão Proibida" e não apenas, como nos outros países, "Seda". Enfim, se você quiser alugá-lo, já sabe...

“Seda” - Alessandro Baricco - Companhia das Letras, 128 págs., R$ 31,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 21/9/2007 e atualizado para o blog