28.6.09

Boa leitura (26) - Um outsider corroído pela fome

Obra mais célebre de Knut Hamsun é reeditada

Faminto, oscilando entre o delírio e a razão, sensível e com todos os sentidos exacerbados por dias e dias de jejum forçado, um jovem escritor vagueia pela Oslo do fim do século XIX (ainda chamada Cristiânia) em busca de realização. Algumas vezes consegue um pouco de dinheiro escrevendo artigos para um jornal, mas no restante do tempo vive na miséria. Vai empenhando aos poucos até a roupa do corpo para obter uns trocados e o único e velho cobertor de que dispõe lhe foi emprestado por um estudante de teologia. Não tem amigos, nem mulher, nem família, ao que tudo indica. E muito raramente consegue o apoio de alguém.

Essa é a triste vida do personagem mais famoso do Nobel de Literatura de 1920, o norueguês Knut Hamsun (1859-1952), em “Fome”, que ganha reedição com a tradução de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, feita nos anos 60 para a “Coleção Prêmio Nobel”, da editora Delta.

Escritor de quase 40 livros, mais conhecido no Brasil a partir da década de 40 — quando saíram “Um Vagabundo Toca em Surdina” e “Frutos da Terra”, entre outros —, e analisado agora a distância, Hamsun foi um modernista de primeira hora.

Já em 1890, quando “Fome” foi lançado, escolheu um estilo cuja criação mais tarde lhe seria atribuída, o do fluxo de consciência, na tentativa de descrever fielmente ao leitor as sensações físicas e psíquicas do personagem. Este é um autêntico outsider, um homem que mais sonha do que age e às vezes mostra um comportamento nos limites da loucura. O autor, porém, não permite que ele perca a dignidade ou se afunde na depressão e acaba por deixar uma porta aberta para a esperança.

Com fortes tintas autobiográficas, o romance mostra também as dificuldades de sobrevivência daqueles que optam por se dedicar apenas à literatura — um ofício que, além de normalmente ser mal valorizado, requer um tempo de trabalho muito diferente do necessário à maioria das profissões.

O próprio Hamsun, aliás, é um capítulo à parte. Teve uma vida conturbada, cheia de aventuras, na Europa e nos Estados Unidos. De família pobre, não frequentou escolas e exerceu profissões das mais diversas, tais como lenhador, marinheiro e jornalista. Gostava de ler e aos 18 anos conseguiu publicar seu primeiro livro, “Den Gaadefulde” (O enigmático). À semelhança de seu personagem, também parecia um tanto louco, além de controvertido e excêntrico. Conta-se que no dia em que recebeu o Nobel perdeu o cheque no meio do caminho para o hotel.

Quando a Alemanha invadiu a Noruega na Segunda Guerra, não hesitou em apoiar Hitler e presenteou seu ministro da Propaganda, Josef Goebbels, com nada menos que sua medalha do Nobel. No pós-guerra foi preso por suas ideias políticas e internado numa clínica psiquiátrica. Passou por um período de ostracismo, mas em 1949, aos 90 anos, publicou um livro defendendo sua posição política e voltou a ter sucesso.

“Fome” - Knut Hamsun - Geração, 176 págs., R$ 29,90

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 15/5/09