19.6.09

Boa leitura (25) - Uma obra clássica sobre o modernismo


O historiador Peter Gay faz um estudo definitivo do movimento

Modigliani (à esq.) e Picasso com o crítico de arte André Salmon em frente do Café de la Rotonde, em Paris - a foto foi tirada por Jean Cocteau em 12 de agosto de 1916

“É assim que se inicia o modernismo, não com um lamento, mas com uma forte emoção”, escreve Peter Gay, historiador alemão radicado nos Estados Unidos, referindo-se à poesia de Charles Baudelaire, para ele “o primeiro herói” do estilo, nesta obra monumental, possivelmente definitiva, sobre um movimento artístico abrangente, rico e duradouro, que mudou o modo de a humanidade tratar a arte e começou muito antes do que ensinam na escola.

Seu objetivo “não é montar um amplo catálogo de todas as áreas e grandes figuras do modernismo, e sim examinar sua presença na cultura e descobrir, se possível, se elas se aglutinam numa mesma entidade cultural”, como diz no prefácio. Também ali ele revela que suas interpretações partem de uma perspectiva freudiana; afinal, Freud era a vanguarda da medicina da época. “A técnica psicanalítica de incentivar a livre associação em seus pacientes era o equivalente do pintor impressionista saindo ao ar livre ou do compositor modernista abandonando os bemóis e sustenidos tradicionais”, justifica o autor de “Freud: uma Vida para o Nosso Tempo” e “A Educação dos Sentidos”.

O historiador entende que o estilo começou a aparecer nos anos 1870 — portanto, engloba o impressionismo, na pintura, e o simbolismo, na literatura —, e trata seus defensores já como modernistas, por sua atitude contestadora da estética, da moral e do comportamento de então e suas propostas artísticas inovadoras, daí a “heresia” do subtítulo da obra.

Antes de mergulhar nos detalhes desse imenso período, agrupados em três partes — “Fundadores”, “Clássicos” e “Finais” —, Gay escreve sobre o “clima de ideias, sentimentos e opiniões” vigente em especial em Paris, esboçando um painel da situação socioeconômica, política e até religiosa que vai de meados do século XIX até a década de 60.

“As obras modernistas só podem ter surgido num estágio avançado da civilização ocidental, numa época em que certos hábitos e atitudes sociais funcionavam a seu favor”, explica. Foi um fenômeno urbano e de expansão intimamente ligada à da economia e, além disso, bancado pela elite burguesa, embora destinado justamente a chocá-la.

Depois da contextualização, Peter Gay se aprofunda em cada área: pintura e escultura; literatura; música e dança; arquitetura e design; teatro e cinema. Todos os grandes criadores num período que cobre cerca de cem anos merecem sua atenção, entre os quais Monet, Gauguin, Duchamp, Picasso — cuja definição para a arte moderna, “uma soma de destruições”, ele adota.

Já o capítulo dedicado à literatura gira em torno de Henry James, James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust e Franz Kafka. “Ninguém forçou tanto os limites do costumeiro como eles — a não ser os compositores modernistas”, argumenta. Os músicos de vanguarda daquela época, aliás, continuam a sê-lo, Gay afirma, já que até hoje não fazem parte da corrente estética dominante, como ocorreu com a pintura e a literatura.

Assim, Arnold Schoenberg e Igor Stravinski, os grandes do século XX, ao lado de “titãs menores” como Alban Berg e John Cage, continuam a ser ouvidos por uma pequena elite. Já em relação à dança, ele dá relevo à parceria Stravinski-George Balanchine e à coreógrafa Martha Graham, “a incontestável grã-sacerdotisa da dança moderna”.

Em termos de arquitetura e design, sua atenção se detém em Frank Lloyd Wright, Mies van der Rohe, Le Corbusier e na Bauhaus.

Há ainda o teatro, assolado pelas loucuras de Alfred Jarry e pelas inovações radicais de August Strindberg. Embora haja objeções quanto à inclusão do cinema no espectro modernista, Gay não deixou de fora a revolução que esse meio representou e analisa sua história.

Como se ainda não bastasse, o autor dedica a parte final à perseguição política de direita e de esquerda sofrida pelos modernistas, que os levou a trocar a Europa pelos EUA, onde tudo parece ter terminado, com a ascensão da pop art e o crescimento da indústria cultural.

Ele duvida, no entanto, desse fim. E abre um debate sob o título “Vida após a morte?” Pois vê indícios de um renascimento modernista na obra literária de ninguém menos que Gabriel García Márquez e na arquitetura de Frank O. Gehry, entre outros. Os argumentos para essa apaixonante discussão estão exatamente nas páginas deste livro.


“Modernismo — O Fascínio da Heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” - Peter Gay - Companhia das Letras, 600 págs., R$ 64,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 17/4/2009