28.6.09

Mora Fuentes, a fábula de um rumo

José Luis Mora Fuentes
(Valencia, España, 9/10/1951 - Campinas, Brasil, 13/6/2009)


"As coisas sem conta que se acumulam por toda uma vida eu as perdi em algum lugar. Agora em mim, apenas um desejo antigo de finitude. Nem por isso o tempo à minha frente deixa de se fazer extenso desordenado. Tento me convencer que sempre surgirão novas possibilidades. E é por isso que manhoso, inventariando ilusões, oposto à verdade, aguardando espantos, exausto sim, como quando chegamos ao mais alto do monte que subimos, extraviado dos homens, naufragando impune nas invenções da vida, aqui estou. E pela milésima vez eu recomeço e recomeço e me refaço."


(in "Fábula de um Rumo" - Mora Fuentes, Moderna, 1980)

Foto: Mora Fuentes em janeiro de 1991 na Casa do Sol, em Campinas - álbum de família

Boa leitura (26) - Um outsider corroído pela fome

Obra mais célebre de Knut Hamsun é reeditada

Faminto, oscilando entre o delírio e a razão, sensível e com todos os sentidos exacerbados por dias e dias de jejum forçado, um jovem escritor vagueia pela Oslo do fim do século XIX (ainda chamada Cristiânia) em busca de realização. Algumas vezes consegue um pouco de dinheiro escrevendo artigos para um jornal, mas no restante do tempo vive na miséria. Vai empenhando aos poucos até a roupa do corpo para obter uns trocados e o único e velho cobertor de que dispõe lhe foi emprestado por um estudante de teologia. Não tem amigos, nem mulher, nem família, ao que tudo indica. E muito raramente consegue o apoio de alguém.

Essa é a triste vida do personagem mais famoso do Nobel de Literatura de 1920, o norueguês Knut Hamsun (1859-1952), em “Fome”, que ganha reedição com a tradução de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, feita nos anos 60 para a “Coleção Prêmio Nobel”, da editora Delta.

Escritor de quase 40 livros, mais conhecido no Brasil a partir da década de 40 — quando saíram “Um Vagabundo Toca em Surdina” e “Frutos da Terra”, entre outros —, e analisado agora a distância, Hamsun foi um modernista de primeira hora.

Já em 1890, quando “Fome” foi lançado, escolheu um estilo cuja criação mais tarde lhe seria atribuída, o do fluxo de consciência, na tentativa de descrever fielmente ao leitor as sensações físicas e psíquicas do personagem. Este é um autêntico outsider, um homem que mais sonha do que age e às vezes mostra um comportamento nos limites da loucura. O autor, porém, não permite que ele perca a dignidade ou se afunde na depressão e acaba por deixar uma porta aberta para a esperança.

Com fortes tintas autobiográficas, o romance mostra também as dificuldades de sobrevivência daqueles que optam por se dedicar apenas à literatura — um ofício que, além de normalmente ser mal valorizado, requer um tempo de trabalho muito diferente do necessário à maioria das profissões.

O próprio Hamsun, aliás, é um capítulo à parte. Teve uma vida conturbada, cheia de aventuras, na Europa e nos Estados Unidos. De família pobre, não frequentou escolas e exerceu profissões das mais diversas, tais como lenhador, marinheiro e jornalista. Gostava de ler e aos 18 anos conseguiu publicar seu primeiro livro, “Den Gaadefulde” (O enigmático). À semelhança de seu personagem, também parecia um tanto louco, além de controvertido e excêntrico. Conta-se que no dia em que recebeu o Nobel perdeu o cheque no meio do caminho para o hotel.

Quando a Alemanha invadiu a Noruega na Segunda Guerra, não hesitou em apoiar Hitler e presenteou seu ministro da Propaganda, Josef Goebbels, com nada menos que sua medalha do Nobel. No pós-guerra foi preso por suas ideias políticas e internado numa clínica psiquiátrica. Passou por um período de ostracismo, mas em 1949, aos 90 anos, publicou um livro defendendo sua posição política e voltou a ter sucesso.

“Fome” - Knut Hamsun - Geração, 176 págs., R$ 29,90

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 15/5/09

19.6.09

Boa leitura (25) - Uma obra clássica sobre o modernismo


O historiador Peter Gay faz um estudo definitivo do movimento

Modigliani (à esq.) e Picasso com o crítico de arte André Salmon em frente do Café de la Rotonde, em Paris - a foto foi tirada por Jean Cocteau em 12 de agosto de 1916

“É assim que se inicia o modernismo, não com um lamento, mas com uma forte emoção”, escreve Peter Gay, historiador alemão radicado nos Estados Unidos, referindo-se à poesia de Charles Baudelaire, para ele “o primeiro herói” do estilo, nesta obra monumental, possivelmente definitiva, sobre um movimento artístico abrangente, rico e duradouro, que mudou o modo de a humanidade tratar a arte e começou muito antes do que ensinam na escola.

Seu objetivo “não é montar um amplo catálogo de todas as áreas e grandes figuras do modernismo, e sim examinar sua presença na cultura e descobrir, se possível, se elas se aglutinam numa mesma entidade cultural”, como diz no prefácio. Também ali ele revela que suas interpretações partem de uma perspectiva freudiana; afinal, Freud era a vanguarda da medicina da época. “A técnica psicanalítica de incentivar a livre associação em seus pacientes era o equivalente do pintor impressionista saindo ao ar livre ou do compositor modernista abandonando os bemóis e sustenidos tradicionais”, justifica o autor de “Freud: uma Vida para o Nosso Tempo” e “A Educação dos Sentidos”.

O historiador entende que o estilo começou a aparecer nos anos 1870 — portanto, engloba o impressionismo, na pintura, e o simbolismo, na literatura —, e trata seus defensores já como modernistas, por sua atitude contestadora da estética, da moral e do comportamento de então e suas propostas artísticas inovadoras, daí a “heresia” do subtítulo da obra.

Antes de mergulhar nos detalhes desse imenso período, agrupados em três partes — “Fundadores”, “Clássicos” e “Finais” —, Gay escreve sobre o “clima de ideias, sentimentos e opiniões” vigente em especial em Paris, esboçando um painel da situação socioeconômica, política e até religiosa que vai de meados do século XIX até a década de 60.

“As obras modernistas só podem ter surgido num estágio avançado da civilização ocidental, numa época em que certos hábitos e atitudes sociais funcionavam a seu favor”, explica. Foi um fenômeno urbano e de expansão intimamente ligada à da economia e, além disso, bancado pela elite burguesa, embora destinado justamente a chocá-la.

Depois da contextualização, Peter Gay se aprofunda em cada área: pintura e escultura; literatura; música e dança; arquitetura e design; teatro e cinema. Todos os grandes criadores num período que cobre cerca de cem anos merecem sua atenção, entre os quais Monet, Gauguin, Duchamp, Picasso — cuja definição para a arte moderna, “uma soma de destruições”, ele adota.

Já o capítulo dedicado à literatura gira em torno de Henry James, James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust e Franz Kafka. “Ninguém forçou tanto os limites do costumeiro como eles — a não ser os compositores modernistas”, argumenta. Os músicos de vanguarda daquela época, aliás, continuam a sê-lo, Gay afirma, já que até hoje não fazem parte da corrente estética dominante, como ocorreu com a pintura e a literatura.

Assim, Arnold Schoenberg e Igor Stravinski, os grandes do século XX, ao lado de “titãs menores” como Alban Berg e John Cage, continuam a ser ouvidos por uma pequena elite. Já em relação à dança, ele dá relevo à parceria Stravinski-George Balanchine e à coreógrafa Martha Graham, “a incontestável grã-sacerdotisa da dança moderna”.

Em termos de arquitetura e design, sua atenção se detém em Frank Lloyd Wright, Mies van der Rohe, Le Corbusier e na Bauhaus.

Há ainda o teatro, assolado pelas loucuras de Alfred Jarry e pelas inovações radicais de August Strindberg. Embora haja objeções quanto à inclusão do cinema no espectro modernista, Gay não deixou de fora a revolução que esse meio representou e analisa sua história.

Como se ainda não bastasse, o autor dedica a parte final à perseguição política de direita e de esquerda sofrida pelos modernistas, que os levou a trocar a Europa pelos EUA, onde tudo parece ter terminado, com a ascensão da pop art e o crescimento da indústria cultural.

Ele duvida, no entanto, desse fim. E abre um debate sob o título “Vida após a morte?” Pois vê indícios de um renascimento modernista na obra literária de ninguém menos que Gabriel García Márquez e na arquitetura de Frank O. Gehry, entre outros. Os argumentos para essa apaixonante discussão estão exatamente nas páginas deste livro.


“Modernismo — O Fascínio da Heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” - Peter Gay - Companhia das Letras, 600 págs., R$ 64,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 17/4/2009