21.1.09

Boa leitura (15) - O mundo desde o início, segundo Qfwfq

As “cosmicômicas” do personagem de nome impronunciável
de Italo Calvino

A imaginação parece não ter limites quando se trata do grande escritor italiano Italo Calvino (1923-1985). A vontade de inovar também. Pois com este “Todas as Cosmicômicas”, o autor do delicioso “Se um Viajante Numa Noite de Inverno” mergulha o leitor num mundo fantástico, ou melhor, na “realidade” do princípio do universo.

Inspirado em pesquisas científicas, ele nos conta, pela voz de seu personagem de nome impronunciável, Qfwfq, de bilhões de anos, nascido antes do big bang, como chegamos ao atual estado de civilização, fazendo, com muito humor, uma crítica à condição humana.

Acompanhamos os personagens numa visita à Lua — que alcançam usando escada — para extrair leite de sua crosta; ou comprimidos num ponto antes da criação do universo; ou num jogo com átomos.

A obra reúne “As Cosmicômicas” (1965), que aqui saiu pela Companhia das Letras em 1992, “T=0” (1967) e os “contos dedutivos”, em que o narrador desenvolve uma espécie de raciocínio obsessivo e labiríntico para suas idéias.

Em 1964, em carta a Giambattista Vicari, diretor da revista “Il Caffè”, Calvino fala da vontade de estrear esse experimento narrativo numa edição dedicada a ele: “Será uma coisa nova e divertida, espero.” Não há dúvida.

“Todas as Cosmicômicas”- Italo Calvino - Companhia das Letras, 368 págs., R$ 46,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 8/6/2007

17.1.09

Boa leitura (14) - Obra-prima de um virtuose da literatura


“Concerto Barroco”, a “suma teológica” da carreira de Alejo Carpentier, volta em nova e caprichada tradução

Volta às livrarias uma jóia literária do grande autor latino-americano Alejo Carpentier (Havana, 1904-Paris, 1980): “Concerto Barroco”. Escrito em 1974, o livro, que teve edição anterior por aqui em 1985 pela Brasiliense, foi considerado pelo próprio escritor, um apaixonado pela música, a “suma teológica” de sua carreira.
Nele está presente o “real maravilhoso” — a coexistência em um mesmo espaço e tempo de dois mundos diferentes — tão caro a Carpentier desde 1949, quando lançou o romance “O Reino Deste Mundo”.

A história, que se passa no início do século XVIII — embora lá pelo meio do enredo o narrador faça uma “viagem ao futuro” —, é a de um milionário da prata mexicana que viaja para uma temporada na Europa com um criado, demorando-se em Veneza em pleno carnaval e vivendo peripécias eróticas e musicais. Ali ele encontra Vivaldi, o napolitano Scarlatti e o anglo-saxão Haendel. Acompanhados por uma orquestra de 70 jovens órfãs de um convento, eles protagonizam uma delirante “jam session”. E o mestre veneziano se interessa em compor com o rico homem a ópera “Montezuma”, sobre a conquista do México.

O barroco do título refere-se não só ao período, mas à estrutura do texto, que explode em cores e sons e é fiel ao que Carpentier, um virtuose da literatura, pensava sobre esse movimento estético, para ele “uma arte em movimento, uma arte de pulsão”, movimento que é, sobretudo, música. Assim, o leitor segue enlevado a sonoridade das palavras e o ritmo das frases, em páginas de intensa força poética.

Leiam um trecho, sobre a folia em Veneza: “(...) entre cinzentos, opalescências, matizes crepusculares, sanguinas apagadas, fumaças de um azul pastel, tinha estourado o carnaval, o grande carnaval da Epifania, em amarelo-laranja e amarelo-tangerina, em amarelo-canário e em verde-rã, em vermelho-romã, vermelho de pisco-de-peito-ruivo, vermelho de caixas chinesas, trajes axadrezados em anil, e açafrão, laços e rosetas (...), bicórnios e plumagens (...), com tal estridor de címbalos e matracas, de tambores, pandeiros e cornetas, que todas as pombas da cidade, num só vôo que por segundos enegreceu o firmamento, debandaram para margens distantes.

“Concerto Barroco” - Alejo Carpentier - Companhia das Letras, 96 págs., R$ 27,50

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 3/10/2008