19.12.08

Boa leitura (13) - Um escritor pitoresco

Orhan Pamuk encanta com “O Livro Negro”


Como o mágico de um cabaré de Istambul, a certa altura do livro, que vai tirando caixas de dentro de caixas num truque que parece interminável, Orhan Pamuk construiu nos anos 90 esta intrincada trama, aparentemente a história triste de um abandono amoroso duplo cercada de mistério, tocando as raias de um caso policial de desaparecimento e até de falsidade ideológica. E, como não poderia deixar de ser no caso desse apaixonado por sua terra natal, a cidade aparece aqui em toda a sua grandiosidade e miséria, com seus monumentos, mas também as áreas mais recônditas e marginais.

É numa Istambul invernal, enevoada, pardacenta, que o protagonista, o advogado Galip, chega em casa numa noite e depara com uma breve carta de despedida de sua mulher e prima, Rüya (“sonho”), por quem é apaixonado desde a infância. Ele tem de ir a um jantar no prédio onde moram seus pais e tios e mente para eles sobre a ausência dela. Também está intrigado com o sumiço de outro integrante da família, meio-irmão de Rüya, o jornalista Cêlal, que admira e de quem é amigo.

Galip desconfia que ambos estejam juntos, mas os parentes nem se importam mais com os costumeiros desaparecimentos de Cêlal, de quem desistiram de saber endereço ou telefone, a não ser o do jornal para o qual escreve crônicas. Estas são dos mais variados temas — memórias da vida familiar, locais e personalidades de Istambul, estrelas de cinema, poetas sufis, o hurufismo (obscura seita do século XIV cujos adeptos vêem letras desenhadas por Alá nos rostos), mas também gângsteres e política. Sem dúvida, a vida do famoso Cêlal não é fácil e ele recebe ameaças, daí esconder-se.

Galip está tão certo de que poderá achar Cêlal (e, claro, Rüya) por meio de mensagens ocultas nas crônicas e também se pensar de modo igual que se muda para o que seria o último apartamento do amigo (no sótão do prédio familiar) e passa a viver como se fosse ele. Não só: com o tempo passa a escrever como Cêlal e a assinar com o nome dele as crônicas para o jornal. Já Pamuk as entremeia com os capítulos, enredando as épocas em que foram escritas com o presente, a cidade antiga com a moderna, tema aliás ao qual também se dedicou em “Istambul”, retratando o perene conflito e fascínio entre Oriente-Ocidente.

Assim como o autor, o leitor terá de prezar a lentidão das ações, ser paciente e perspicaz e agir como um detetive que sabe extrair pistas de fontes insuspeitas e fatos que passariam despercebidos. Tudo é peça para esclarecer o enigma e o engenho de Pamuk exige aguda atenção — como a de uma leitora conterrânea dele. Ela revelou num site que na edição turca o escritor cita o nome do edifício onde mora usando a letra inicial de cada parágrafo de certo trecho da obra.

Também a certa altura deste “O Livro Negro”, o cronista diz: “Sou um escritor ‘pitoresco’.” Pitoresco é Pamuk e no sentido original: a palavra derivada do italiano “pittoresco” (relativo a obras de pintura, em especial a paisagens e cenas bem expressivas) representa tudo o que é digno de ser pintado, é envolvente e fascinante, em suma, a alta literatura.

Pois foi pintando Istambul com tonalidades fascinantes (outro tom predominante no “Livro Negro” é o verde da tinta das canetas) que Pamuk, nascido em 1952, conquistou o Nobel de Literatura em 2006 e além de ser o principal romancista turco da atualidade tem seus livros, como “O Castelo Branco”, “Meu Nome É Vermelho” e “Neve”, publicados em mais de 40 cores, quer dizer, idiomas.


“O Livro Negro” - Orhan Pamuk - Companhia das Letras, 528 págs., R$ 62,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 12/12/2008

Vejam também: depoimento de Pamuk a Edney Silvestre, da Globo.com, parte 1 e parte 2