14.12.08

Boa leitura (12) - Kadaré tira poesia das pedras

Autor relembra a infância sob a 2ª Guerra

Poético, melancólico, mas com toques bem-humorados, e francamente autobiográfico é este romance do escritor albanês Ismail Kadaré. Publicado pela primeira vez em 1970, ele agora ganha tradução caprichada, diretamente do albanês, de Bernardo Joffily.

A entrada da Albânia na modernidade coincide aqui com a pré-adolescência do narrador, um menino fantasioso e inteligente, que, durante a Segunda Guerra Mundial, vê suceder várias vezes a ocupação de sua cidade natal, Gjirokastra — não por acaso a mesma de Kadaré —, pelos fascistas italianos, depois pelos gregos e, finalmente, pelos nazistas.

Resistente como a pedra usada na construção das casas e no calçamento, presa a antigas tradições e superstições, que reluta em abandonar, fechada sobre si mesma, a população é obrigada a entrar em contato com novidades — como os aviões — e a sair da vidinha provinciana quando começam os bombardeios.

Em meio a momentos de grande tensão e mesmo ao testemunhar a crueldade da guerra — como quando um dos habitantes desfila, triunfante, pela cidade exibindo o braço de um soldado inglês que morreu quando seu avião caiu nos arredores da cidade —, o menino escapa pela fantasia, dando vida até às casas pétreas, à cisterna, aos bombardeiros e caças no recém-construído aeroporto e aos elementos naturais, assim como descobre o fascínio da leitura, ao ler “Macbeth”. Seu envolvimento com a leitura da tragédia é tal que ele até fica doente.

O leitor é situado nos fatos reais que cercam a vida do garoto por meio de pequenas “crônicas” — recortes de notícias do jornal municipal da época e também das anotações de uma misteriosa velha.

Bastante conhecido no Brasil pelo livro “Abril Despedaçado”, adaptado para o cinema por Walter Salles Jr. em 2001, indicado várias vezes para o Nobel de Literatura, ganhador, em 2005, do primeiro International Booker Prize pelo conjunto da obra, Kadaré nasceu em 1936 e começou a carreira literária como poeta em 1954. Na década de 1960, estreou na ficção com “O General do Exército Morto”, com o qual passou a ser conhecido na Europa.

Envolvido em política, acabou perseguido pelas críticas que fazia ao partido comunista, então no poder, e teve de pedir asilo à França nos anos 1990. Só em 1999 voltou para a Albânia. Entre os livros do autor publicados no Brasil figuram “Dossiê H”, “Os Tambores da Chuva” e “A Filha de Agamenon & O Sucessor”.


“Crônica na Pedra” - Ismail Kadaré - Companhia das Letras, 280 págs., R$ 44,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 10/10/2008