23.2.09

Boa leitura (17) - Ferreira Gullar permanente e de repente


Volume de mais de mil páginas reúne boa parte da obra do escritor

“Uma parte de mim/ é permanente:/ outra parte/ se sabe de repente” — esses versos pertencem a um dos inúmeros belos poemas de Ferreira Gullar, o “Traduzir-se”. Publicado no livro “Na Vertigem do Dia”, de 1980, ele agora está numa das páginas deste monumental “Ferreira Gullar — Poesia Completa, Teatro e Prosa”. Completa até o volume ir para a gráfica, claro. Pois a parte “de repente” continua a se espantar com a vida. E a produzir. Em programa de televisão exibido neste mês (janeiro) pela Globonews, este prolífico e premiado escritor disse algo como “a poesia vem do espanto”. Deve lançar, ainda neste ano, nova safra poética sob o título “Em Alguma Parte Alguma”.

Enquanto isso, o leitor terá muito com que se deleitar, incluindo-se aí poemas, peças de teatro e ensaios inéditos em livro, assim como uma raridade reproduzida no apêndice, embora naturalmente considerada “imatura” pelo poeta: seu primeiro livro, “Um pouco acima do Chão”, de 1949. Até os pequenos vão se divertir, já que a “Poesia Completa” traz os livros “Um Gato Chamado Gatinho”, “Dr. Urubu e Outras Fábulas” e “O Touro Encantado”.

No entanto, nem só de poesia é feita a vida desse maranhense nascido José Ribamar Ferreira, em 10 de setembro de 1930, em São Luís, e radicado desde 1951 no Rio. Sua obra é composta de textos de ficção — “Crime na Flora ou Ordem e Progresso” e “Cidades Inventadas” —, crônicas para jornais, ensaios — com “Teoria do não-Objeto”, Gullar deu novo rumo à vanguarda brasileira há 50 anos — e peças de teatro, como “Um Rubi no Umbigo”.

Todos esses textos estão nesta edição, organizados e estabelecidos (com assistência do autor) pelo poeta, crítico literário, professor e membro da Academia Brasileira de Letras Antonio Carlos Secchin, com a colaboração de Augusto Sérgio Bastos. Secchin, aliás, integrou o grupo de intelectuais que se reuniu e enviou um dossiê para a Academia Sueca indicando Gullar para o Prêmio Nobel de Literatura de 2002.

Mais conhecido pelos livros “Poema Sujo” e “Dentro da Noite Veloz”, o primeiro escrito no exílio, em Buenos Aires, nos anos da ditadura (no dia seguinte ao golpe militar de 1964 ele se filiou ao Partido Comunista Brasileiro), o “vertiginoso depoimento de um artista prestando contas a si mesmo e a seu tempo”, nas palavras de Secchin no “Prefácio”, e o segundo de sofisticada reflexão política, Gullar também se dedicou a experimentos concretistas, assim como a poemas líricos e amorosos, compondo uma obra plural, multifacetada.

Tal pluralidade é apresentada e analisada não só pelo organizador deste volume — que também se encarrega de sua biografia — como por importantes críticos e estudiosos de literatura na seção “Fortuna Crítica”, entre eles Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Ivan Junqueira e Miguel Sanches Neto.

Completam a edição bibliografia de e sobre o autor — o que inclui discografia, filmografia, documentários, roteiros de telenovelas, séries e minisséries —, cronologia de vida e obra, fotos e outras imagens, como dois auto-retratos (o poeta é, ainda, pintor e desenhista nas horas de folga), além do manuscrito de “Corola”, poema que integrará seu próximo livro.

Além deste “Poesia Completa”, o leitor pode, igualmente, acompanhar a trajetória do poeta pelo seu site. Afinal, como ele diz em “Barulhos”: “O poema/ é sem matéria palpável/ tudo/ o que há nele/ é barulho// quando rumoreja/ ao sopro da leitura.”

“Ferreira Gullar - Poesia Completa, Teatro e Prosa” - Editora Nova Aguilar, 1.264 págs.,
R$ 229,90

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 30/1/2009