2.11.06

Quando eu não mais estiver na Terra

Aqui a natureza chora por todos os mortos. Lembro-me das ausências mais próximas. Faço silêncio por elas. Meus avós, uma tia, meus escritores queridos. Entre eles, a saudosa Hilda, de quem transcrevo o poema abaixo.

XXI

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros há de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.


(Hilda Hilst, in Poemas Malditos, Gozosos e Devotos, Massao Ohno-Ismael Guarnelli, 1984)