lítera-múndi
30.12.08
19.12.08
Boa leitura (13) - Um escritor pitoresco
Como o mágico de um cabaré de Istambul, a certa altura do livro, que vai tirando caixas de dentro de caixas num truque que parece interminável, Orhan Pamuk construiu nos anos 90 esta intrincada trama, aparentemente a história triste de um abandono amoroso duplo cercada de mistério, tocando as raias de um caso policial de desaparecimento e até de falsidade ideológica. E, como não poderia deixar de ser no caso desse apaixonado por sua terra natal, a cidade aparece aqui em toda a sua grandiosidade e miséria, com seus monumentos, mas também as áreas mais recônditas e marginais.
É numa Istambul invernal, enevoada, pardacenta, que o protagonista, o advogado Galip, chega em casa numa noite e depara com uma breve carta de despedida de sua mulher e prima, Rüya (“sonho”), por quem é apaixonado desde a infância. Ele tem de ir a um jantar no prédio onde moram seus pais e tios e mente para eles sobre a ausência dela. Também está intrigado com o sumiço de outro integrante da família, meio-irmão de Rüya, o jornalista Cêlal, que admira e de quem é amigo.
Galip desconfia que ambos estejam juntos, mas os parentes nem se importam mais com os costumeiros desaparecimentos de Cêlal, de quem desistiram de saber endereço ou telefone, a não ser o do jornal para o qual escreve crônicas. Estas são dos mais variados temas — memórias da vida familiar, locais e personalidades de Istambul, estrelas de cinema, poetas sufis, o hurufismo (obscura seita do século XIV cujos adeptos vêem letras desenhadas por Alá nos rostos), mas também gângsteres e política. Sem dúvida, a vida do famoso Cêlal não é fácil e ele recebe ameaças, daí esconder-se.
Galip está tão certo de que poderá achar Cêlal (e, claro, Rüya) por meio de mensagens ocultas nas crônicas e também se pensar de modo igual que se muda para o que seria o último apartamento do amigo (no sótão do prédio familiar) e passa a viver como se fosse ele. Não só: com o tempo passa a escrever como Cêlal e a assinar com o nome dele as crônicas para o jornal. Já Pamuk as entremeia com os capítulos, enredando as épocas em que foram escritas com o presente, a cidade antiga com a moderna, tema aliás ao qual também se dedicou em “Istambul”, retratando o perene conflito e fascínio entre Oriente-Ocidente.
Assim como o autor, o leitor terá de prezar a lentidão das ações, ser paciente e perspicaz e agir como um detetive que sabe extrair pistas de fontes insuspeitas e fatos que passariam despercebidos. Tudo é peça para esclarecer o enigma e o engenho de Pamuk exige aguda atenção — como a de uma leitora conterrânea dele. Ela revelou num site que na edição turca o escritor cita o nome do edifício onde mora usando a letra inicial de cada parágrafo de certo trecho da obra.
Também a certa altura deste “O Livro Negro”, o cronista diz: “Sou um escritor ‘pitoresco’.” Pitoresco é Pamuk e no sentido original: a palavra derivada do italiano “pittoresco” (relativo a obras de pintura, em especial a paisagens e cenas bem expressivas) representa tudo o que é digno de ser pintado, é envolvente e fascinante, em suma, a alta literatura.
Pois foi pintando Istambul com tonalidades fascinantes (outro tom predominante no “Livro Negro” é o verde da tinta das canetas) que Pamuk, nascido em 1952, conquistou o Nobel de Literatura em 2006 e além de ser o principal romancista turco da atualidade tem seus livros, como “O Castelo Branco”, “Meu Nome É Vermelho” e “Neve”, publicados em mais de 40 cores, quer dizer, idiomas.
“O Livro Negro” - Orhan Pamuk - Companhia das Letras, 528 págs., R$ 62,00
Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 12/12/2008
Vejam também: depoimento de Pamuk a Edney Silvestre, da Globo.com, parte 1 e parte 2
Las Mujeres (4) - Sara
LA PÁGINA VACÍACómo atrever esta impura
cerrazón de sangre y fuego,
esta urgencia de astro ciego
contra tu feroz blancura.
Ausencia de la criatura
que su nacimiento espera,
de tu nieve prisionera
y de mis venas deudora,
en el revés de la aurora
y el no de la primavera.
(Sara de Ibáñez - Chamberlain, Uruguai-11/1/1909, Montevidéu, 3/4/1979 - in Las Estaciones y Otros Poemas, Tezontle, México, 1957)
14.12.08
Boa leitura (12) - Kadaré tira poesia das pedras
Poético, melancólico, mas com toques bem-humorados, e francamente autobiográfico é este romance do escritor albanês Ismail Kadaré. Publicado pela primeira vez em 1970, ele agora ganha tradução caprichada, diretamente do albanês, de Bernardo Joffily.
A entrada da Albânia na modernidade coincide aqui com a pré-adolescência do narrador, um menino fantasioso e inteligente, que, durante a Segunda Guerra Mundial, vê suceder várias vezes a ocupação de sua cidade natal, Gjirokastra — não por acaso a mesma de Kadaré —, pelos fascistas italianos, depois pelos gregos e, finalmente, pelos nazistas.
Resistente como a pedra usada na construção das casas e no calçamento, presa a antigas tradições e superstições, que reluta em abandonar, fechada sobre si mesma, a população é obrigada a entrar em contato com novidades — como os aviões — e a sair da vidinha provinciana quando começam os bombardeios.
Em meio a momentos de grande tensão e mesmo ao testemunhar a crueldade da guerra — como quando um dos habitantes desfila, triunfante, pela cidade exibindo o braço de um soldado inglês que morreu quando seu avião caiu nos arredores da cidade —, o menino escapa pela fantasia, dando vida até às casas pétreas, à cisterna, aos bombardeiros e caças no recém-construído aeroporto e aos elementos naturais, assim como descobre o fascínio da leitura, ao ler “Macbeth”. Seu envolvimento com a leitura da tragédia é tal que ele até fica doente.
O leitor é situado nos fatos reais que cercam a vida do garoto por meio de pequenas “crônicas” — recortes de notícias do jornal municipal da época e também das anotações de uma misteriosa velha.
Bastante conhecido no Brasil pelo livro “Abril Despedaçado”, adaptado para o cinema por Walter Salles Jr. em 2001, indicado várias vezes para o Nobel de Literatura, ganhador, em 2005, do primeiro International Booker Prize pelo conjunto da obra, Kadaré nasceu em 1936 e começou a carreira literária como poeta em 1954. Na década de 1960, estreou na ficção com “O General do Exército Morto”, com o qual passou a ser conhecido na Europa.
Envolvido em política, acabou perseguido pelas críticas que fazia ao partido comunista, então no poder, e teve de pedir asilo à França nos anos 1990. Só em 1999 voltou para a Albânia. Entre os livros do autor publicados no Brasil figuram “Dossiê H”, “Os Tambores da Chuva” e “A Filha de Agamenon & O Sucessor”.
“Crônica na Pedra” - Ismail Kadaré - Companhia das Letras, 280 págs., R$ 44,00
6.12.08
Boa leitura (11) - O nobre elefante de Saramago
Escritor nos leva em aventura pelo século XVI
Graves problemas respiratórios irrompidos no ano passado interromperam a longa viagem de uma caravana ligeiramente exótica que conduzia um elefante asiático através da Europa no século XVI. Seu condutor, o Nobel de Literatura de 1998, José Saramago, chegou a pensar que os viajantes não cumpririam seu objetivo. Mas, como ele mesmo já disse, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”.
Muito diferente de obras anteriores, como “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “A Caverna”, que prendiam o leitor em teias apocalípticas e claustrofóbicas, o novo romance do escritor português — ele prefere chamar de conto —, a ser lançado mundialmente no Brasil no fim deste mês, esbanja leveza. Mas não deixa de trazer a marca registrada do autor: o fino humor e a profunda ironia, as críticas mordazes à Igreja Católica e aos caprichos e imbecilidades de quem acredita deter algum poder genuíno — do mais humilde súdito ao próprio rei, passando, é claro, pelo pároco.
Nas páginas de “A Viagem do Elefante” comprova-se mais uma vez o poder imaginoso de Saramago, que informa ao leitor, antes de mais nada, o que o inspirou: uma série de pequenas esculturas de madeira que retratavam uma fila de pessoas e um elefante, além da Torre de Belém, em Lisboa, e de outros monumentos europeus, num restaurante em Viena. Contaram-lhe, então, que ela representava a viagem de um elefante do rei d. João III que em 1551 foi levado para a capital austríaca, atravessando meia Europa. Não há muitos registros históricos sobre isso, mas o romancista diz que “pressentiu que podia haver ali uma história”.
Tão logo nos habituemos à pontuação peculiar do autor, essa história passa a fluir harmoniosa: a do elefante Salomão — oferecido por d. João III como presente de casamento ao arquiduque da Áustria, Maximiliano II, genro do imperador da Espanha, Carlos V — e seu difícil itinerário, de início sob um calor tórrido e no fim enfrentando o frio dos Alpes austríacos. Isso sem contar algumas proezas que tem de aprender rapidinho — como ajoelhar-se diante da basílica de Pádua por imposição do padre local, ansioso por fabricar um milagre para a população. Um “milagre” que só é possível pela habilidade e obstinação do personagem mais inteligente do livro, o filosófico cornaca (tratador de elefantes) indiano Subhro, por intermédio do qual Saramago dá suas bordoadas mais elegantes no establishment.
O escritor português, que completou 86 anos no dia 16 e tem mais de 20 livros publicados no Brasil, esteve no dia 26 na Academia Brasileira de Letras, no Rio, onde foi homenageado, e participou do lançamento mundial de “A Viagem do Elefante” no dia 27 no Sesc Pinheiros, em São Paulo.
“A Viagem do Elefante” - José Saramago - Companhia das Letras, 264 págs., R$ 42,00
Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 21/11/2008 com informações atualizadas em 6/12/2008 para este blog
Casa Fernando Pessoa
Aqui neste profundo apartamento
Em que, não por lugar, mas mente estou,
No claustro de ser eu, neste momento
Em que me encontro e sinto-me o que vou,
Aqui, agora, rememoro
Quanto de mim deixei de ser
E, inutilmente, [*] choro
O que sou e não pude ter.
4.12.08
Las Mujeres (3) - Juana
Calle sombreada de sauces
Y azul jacarandá.
Todos los ruidos del mundo
En ella se dormirán.
Y el sueño será azul como
La flor del jacarandá.
¡ Quién te diera, alma cansada
Y herida por el temor,
Todo un día de silencio
En esta calleja en flor!
(Juana de Ibarbourou - Melo, Uruguai, 8/3/1892-Montevidéu, 15/7/1979 - in Poemas, Espasa-Calpe Argentina, 1950)
Boa leitura (10) - Uma homenagem lírica aos que viveram
O escritor inglês John Berger apresenta suas memórias de uma maneira original em “Aqui Nos Encontramos”O aclamado escritor inglês John Berger, de 81 anos, encontrou uma maneira inovadora de narrar suas memórias: ir ao encontro das pessoas que foram muito importantes na sua vida, de diversas nacionalidades e espalhadas por países como Portugal, Suíça, Polônia, Inglaterra, Espanha e França. Com um detalhe: elas estão mortas há muito tempo. Não, nada há de macabro nos relatos, redigidos, aliás, com leveza poética e elegância. Trata-se apenas de uma forma de puxar o fio da meada das lembranças.
A jornada começa em Lisboa, capital que evoca a saudade — esta palavra que surpreende os estrangeiros por só existir na língua portuguesa e à qual ele atribui mais significado do que apenas nostalgia — e o fado, a saudade em forma de música.
Lá, ele encontra o fantasma da mãe. “Aquilo que você deveria saber é o seguinte: os mortos não ficam onde estão enterrados. Os mortos, quando estão mortos, podem escolher onde querem viver na Terra, sempre se supondo que eles decidam ficar na Terra”, adverte-lhe a idosa inglesa, que optou por ficar nessa cidade. E lhe pede para homenagear os que se foram: “Faça o gesto de cortesia de nos observar.”
A primeira homenagem é a um de seus autores preferidos, Jorge Luis Borges, em Genebra, ponto de convergência de revolucionários, conspiradores, líderes do mundo todo, cidade “tão contraditória e enigmática quanto uma pessoa viva”. Ao lado de outra mulher de sua família, desta vez bem viva, sua filha Katya, John visita o túmulo do escritor argentino, que quis ser enterrado na cidade suíça.
Ganhador do prestigiado Booker Prize em 1972 por “G.”, Berger, no entanto, não se restringe apenas a relatar os dias idos. Enquanto viaja, contempla o presente, registra a beleza dos locais e revela suas reflexões sobre o vivido.
Assim é em Le Pont d’Arc, no Ardèche, região no sul da França, quando visita cavernas com pinturas rupestres dos Cro-Magnons descobertas em 1994. Também desenhista, o escritor medita sobre arte e passagem do tempo.
Já no distrito londrino de Arlington, encontra-se com um velho colega da escola de arte, que vive numa casa onde ainda prevalece a decoração do tempo em que sua mulher era viva, para que o amigo o ajude a se lembrar do nome de uma paixão de juventude. “Aqui Nos Encontramos” é seu sétimo livro publicado no Brasil.
“Aqui Nos Encontramos” - John Berger - Rocco, 208 págs., R$ 33,50
Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 18/7/2008