16.9.08

Boa leitura (5) A poesia da penumbra


Tanizaki tece considerações sobre a amor do Oriente pela sombra e do Ocidente pela luz


"A beleza inexiste na própria matéria. Ela é apenas um jogo de sombras e de claro-escuro surgido entre matérias", diz um dos mais importantes escritores japoneses do século XX, Junichiro Tanizaki (1886-1965), neste delicioso ensaio datado de 1933.

O autor do altamente erótico "A Chave", entre outros publicados também pela Companhia das Letras, parte de considerações sobre o estilo arquitetônico das casas tradicionais do Japão e as mudanças pelas quais estavam passando na época - quando a iluminação e o aquecimento elétricos, os ladrilhos, o vidro e uma série de outros produtos começaram a fazer parte do cotidiano japonês - para depois desenvolver o tema da ocidentalização do modo de viver, alimentar-se, vestir-se e até os hábitos higiênicos de seus conterrâneos.

Embora diga não ser contra os hábitos ocidentais, ele lamenta essa modificação cultural e defende a maneira de ser nipônica, mais reservada, afeita à sombra, às opacidades, à meia-luz, aos tons também escurecidos da maquilagem tradicional e até de certos alimentos, como o missô e o shoyu, contrapondo-a à predileção dos ocidentais pela luz. Para ele também, a beleza precisa de certa obscuridade e mistério para ser devidamente desvelada e valorizada.

"De um modo geral, nós, japoneses, sentimos desassossego diante de objetos cintilantes. No Ocidente, prata, ferro ou cobre são usados na fabricação de aparelhos de jantar e talheres, os quais são polidos até brilhar, coisa que não apreciamos", escreve. "Às vezes, fazemos chaleiras, taças e frascos de saquê de prata, mas não os lustramos. Ao contrário, apraz-nos observar o tempo marcar sua passagem esmaecendo o brilho do metal", continua, refletindo também sobre a passagem do tempo ao longo da vida.

A necessidade do devaneio e as condições para que ocorra também estão presentes neste texto predominantemente poético. "Em ambiente escuro, a lustrosa superfície da laca reflete o tremular da chama, faz-nos saber que leves aragens visitam vez ou outra a placidez do aposento e convida-nos a devanear. Se laca ali não houvesse, o mundo de sonhos gerado pela misteriosa luz do candeeiro, cuja oscilação é o pulsar da própria noite, na certa perderia grande parte da sua sedução. Regatos correm sobre o tatame, lagos se formam aqui e ali quando a laca aprisiona a fina, tênue luminosidade proveniente dos pontos de luz cambiante, tecendo padrões que parecem compor um 'makie' [desenho executado com pó de ouro ou prata aspergido sobre superfície laqueada] no negrume da própria noite."


"Em Louvor da Sombra" - Junichiro Tanizaki - Companhia das Letras, 72 págs., R$ 27,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 25/5/2007

Boa leitura (4) Uma romancista talentosa


Maggie O’Farrell. Guardem esse nome.

Elas têm em comum uma sensibilidade à flor da pele e famílias um tanto quanto complicadas. Alice Raikes e Esme Lennox são as protagonistas do primeiro e do terceiro livro da jovem escritora irlandesa Maggie O’Farrell, respectivamente “Depois Que Você Foi Embora” (tradução de Vera Wathely) e “O Último Ato de Esme Lennox” (tradução de Adriana Lisboa).

Apontada como um dos grandes talentos emergentes da literatura de língua inglesa, Maggie, de 36 anos, encanta o leitor com narrativas complexas, mas bem amarradas, e personagens construídos com muita riqueza de sentimentos e inteligência, revelando-se uma escritora com profundo conhecimento da natureza humana.

São obras de grande densidade emocional e alta voltagem poética, que às vezes lembram as de Virginia Woolf, uma de suas escritoras preferidas. Em entrevista reproduzida no seu site, Maggie admite que a poesia tem grande peso na sua literatura: “Na universidade e aos 20 e poucos anos, tive aulas de poesia e isso teve um enorme efeito na minha escrita, obrigando-me a ser mais concisa.”

Em “Depois Que Você Foi Embora”, a história começa de maneira impactante e deixa vários mistérios no ar. A jovem viúva Alice toma um trem na King’s Cross, em Londres, para Edimburgo, na Escócia, onde vai encontrar a família. Depois de cumprimentar as duas irmãs, que foram buscá-la na estação, vai ao banheiro e pelo espelho que há sobre o secador de mãos vê uma cena que a aterroriza. Ao sair, visivelmente desesperada, toma imediatamente o trem de volta. Já em Londres, é atropelada e em menos de 24 horas a família recebe a notícia de que está em coma. Nasce a dúvida: foi acidente ou tentativa de suicídio? O que viu pelo espelho tem ligação com tudo isso? Alice tem consciência, mas não consegue comunicar-se e é por meio de suas reminiscências que o leitor vai encontrar as respostas.

Já “O Último Ato de Esme Lennox”, que se passa em Edimburgo, onde a escritora mora atualmente, trata da internação indevida de mulheres em instituições psiquiátricas, em voga na alta sociedade européia no início do século XX. Indevida porque, com a anuência de médicos e parentes, muitas mulheres passaram a vida nesses locais apenas por ter um comportamento anticonvencional ou se mostrar muito criativas (lembram-se do que fizeram com Camille Claudel?). É o que ocorre a Esme. Idosa, ela tem alta de um hospital psiquiátrico e procura a família, no caso a sobrinha Iris Lockhart, que nem sabia de sua existência.

A trama se desenrola em torno do que ocorre a partir daí, mesmo porque Iris logo saberá que a tia-avó foi internada, entre outros motivos que constam de seu prontuário médico, por “insistir em manter compridos os cabelos” e “dançar em frente do espelho usando as roupas da mãe”.


“Depois Que Você Foi Embora” e “O Último Ato de Esme Lennox” - Maggie O’Farrell - Record, 384 págs. e 224 págs., R$ 39,00 e R$ 29,00

Publicado no caderno "EU&Fim de Semana" do jornal "Valor" em 18/7/2008